Não sirvo, sirvo-me
29 de julho de 2012 | 3h 1
JOÃO UBALDO RIBEIRO - O Estado de S.Paulo
Acho que todo mundo já se intrigou, ou se intriga a cada dia, com a
constatação de que a vida pública, segundo os que exercem o poder político, é
duríssima e exige todo tipo de sacrifício e, não obstante, ninguém que está no
poder quer deixá-lo. É um paradoxo curioso e não duvido que, entre
parlamentares, por exemplo, exista quem tenha a cara de pau de afirmar que com
isso se demonstra o espírito cívico do brasileiro, disposto a doar a própria
vida à nação, pois, conforme está no Hino Nacional, quem adora a pátria não teme
a própria morte, quanto mais algumas inconveniências perfeitamente suportáveis
para um espírito forte, determinado e norteado por ideais.
Estamos fartos de saber que é tudo mentira e enrolação safada e que, entre
nós, o habitual para quem chega ao poder, em qualquer dos níveis da federação, é
furtar de todas as formas concebíveis, desde material de escritório a verbas
públicas, direta ou indiretamente, ou se beneficiar de sua condição de maneira
indevida, seja por meio de privilégios legais mas indecentes, imorais e
abusivos, seja por tráfico de influência. Ninguém tem ideal nenhum e muito menos
se organiza em grupos ou partidos para procurar fazer valer princípios ou visar
ao bem comum. O negócio aqui no Brasil é se fazer e tirar do mandato ou cargo
público o maior proveito pessoal possível e todos os partidos obedecem a um
mesmo manual de conduta, partido aqui não quer dizer nada.
O poder engorda e os poderosos vivem bem-dispostos e cevados, com todos os
dentes. Nenhum deles, evidentemente, admite que se apropria criminosamente do
que não lhe pertence ou se aproveita de vantagens ilegítimas. Mas a parentela
viceja e o patrimônio prospera. Quantos, por este nosso Brasil afora, não são
conhecidos em suas cidades como habilidosíssimos ladrões, que nasceram em
famílias para lá de mal remediadas e hoje estão entre as grandes fortunas dos
Estados de onde vieram, ou mesmo do Brasil? Ou, se não estão entre as grandes
fortunas, se encontram entre os mais bem aquinhoados, com terreninhos,
fazendinhas, apartamentozinhos e a família toda "colocada".
E também, apesar dos percalços da vida pública, o poder com toda a certeza
libera endorfinas formidáveis, de modo que seus ocupantes têm o riso fácil, são
generosos e de boa convivência, em paz com a vida. Não sei se contribui para
isso o fato de que os mais poderosos entre eles não têm, nem nunca vão ter,
problemas de moradia, problemas de aposentadoria ou problemas de tratamento de
saúde, nunca entraram numa fila, nunca precisaram penar à porta de repartição
nenhuma, nunca tiveram que se preocupar com o futuro e ficarão impunes, com a
fortuna intacta, não importa em que falcatruas sejam pilhados. É, deve favorecer
um pouco a calma e a tranquilidade deles.
Já nos acostumamos a ver os nossos governantes - e lembro que parlamentar,
seja senador, seja deputado estadual ou federal, assim como vereadores, é
governante - serem qualificados de larápios e ninguém mais se espantar, ou mesmo
se interessar, quando alguém comenta que o governador Fulano é ladrão, o
deputado Sicrano levou comissão em todas as obras de seu reduto eleitoral, o
prefeito Beltrano tomou uma grana pesada de empreiteiras e imobiliárias, o
desembargador Como-é-nome vendeu duas dúzias de sentenças a peso d'oiro, o
vereador Unha Grande cobra por serviços legislativos e por aí vai, qualquer
compatriota sabe essas coisas de cor, parecem fazer parte de nossa identidade.
Talvez simbolicamente, pelo menos um governante nosso, o lulista Paulo Maluf,
está sendo procurado pela Interpol e, se sair do Brasil, vai preso. Em verdade
lhes digo: Não se fará justiça enquanto essa lista da Interpol não contiver
alguns milhares de nomes genuinamente brasileiros.
Somos assim desde o nosso começo. Em nossa vida pública, muito raramente
servir foi a diretriz, servir-se tem sido a norma. Nos Estados Unidos, por
exemplo, o governo, diferentemente daqui, não costuma ocupar as principais
manchetes. E as capitais, para surpresa de muitos, não são, como no Brasil, as
maiores cidades de cada Estado. Ao contrário, são cidades pequenas, destituídas
de qualquer glamour e sem nada do movimento das grandes metrópoles. Aqui não,
aqui, como se gravita em torno do Estado e do poder, onde o Estado se mete em
tudo e a burocracia parasítica e dispendiosa, a ganância fiscal, a roubalheira e
a ineficiência fazem parte de um aparato secularmente estabelecido, as capitais
são de longe as maiores cidades.
Hoje deve ser mais fácil roubar do que há relativamente poucos anos. A
máquina do Estado tornou-se um Leviatã disforme e teratoide, em que ninguém de
fato se entende, nem lhe conhece os labirintos institucionais e jurídicos. O
dinheiro é cada vez mais volátil e portável pelos ares, ninguém sabe o tamanho e
as ramificações dos tentáculos da corrupção e ainda moramos num país com muitos
municípios onde, se quiser, o prefeito saca o dinheiro do governo, enfia-o na
algibeira e se pirulita para sempre, já aconteceu. Ou às vezes é pegado, mas não
dá em nada, o processo rola indefinidamente, o senador Esse-Menino é padrinho do
rapaz, o juiz é gente do senador, a acusação faz corpo mole e, sabem como são
essas coisas, o pessoal acaba esquecendo e não é nem impossível que o
indigitado, munido da bênção do padrinho de um punhado de ordens judiciais, se
eleja prefeito novamente.
Por essas razões e por outras, não deve causar espanto anunciarem tanto
dinheiro para conquistar prefeituras minúsculas e inexpressivas. Compra-se em
grosso, é exigência da economia criada em torno das eleições, que envolve muitas
atividades. Não tem nada a ver com o interesse público. Bem verdade que quem
acaba pagando somos nós, mas foi combinado que não faz parte da democracia
brasileira dar palpite sobre como gastam nosso
dinheiro.
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