Instado por colegas, que consideram uma mais ampla veiculação do tema de
grande utilidade e pertinência, animo-me a trazer novamente à baila as
importantes singularidades técnicas de nossos solos superficiais..
Conservar intacta a camada superficial de solos,
evitando revolvê-la ou removê-la: no âmbito da Geologia e da Agronomia
talvez não haja recomendação técnica mais simples e importante do que essa para
orientar as atividades humanas no meio urbano e no meio rural.
Na verdade, há dois selos naturais protetores dos terrenos
contra os deletérios processos da lixiviação e da erosão, a cobertura vegetal e
os solos superficiais. Vamos considerar que para a implantação de
empreendimentos humanos, sejam eles rurais ou urbanos, não há como não
desfazermo-nos do primeiro selo, a vegetação natural (e vamos todos torcer para
que isso seja feito com responsabilidade e discernimento), o que nos conduz à
indispensável obrigação de melhor conhecer, nos seus mais diversos aspectos, o
segundo selo, os solos superficiais.
Ainda que de forma resumida, cabe,
de início, esclarecer uma questão terminológica. Os geólogos de
engenharia e os agrônomos usam termos diferentes para classificar os diferentes
estratos de solos. Os primeiros adotam a seguinte série para o que denominam de
camadas: solo orgânico (camada superficial dessimétrica rica em
matéria orgânica); solo superficial (camada bastante afetada pelo
intemperismo e pelos processos de laterização e pedogênese, cuja espessura
varia de 0,5 m a alguns metros); solo saprolítico ou solo de alteração de
rocha (camada de solo com minerais já em razoável estágio de alteração físico-quimica,
mas que guarda várias feições herdadas da rocha original, com espessuras extremamente variáveis, desde decímetros até mais de
uma dezena de metros); finalmente, com
profundidade praticamente ilimitada, rocha
pouco alterada ou sã. Já os agrônomos, que ao invés de camada usam o
termo horizonte, classificam a mesma seqüência com as seguintes
denominações: horizonte A, horizonte B, horizonte C e rocha,
agregando às propriedades descritas características
próprias do comportamento agronômico destes solos.
Em regra, a camada de solo superficial (horizonte B agronômico),
fortemente intemperizada, tem uma composição bem mais argilosa do que as
camadas inferiores (solo saprolítico – horizonte C agronômico), onde predominam
granulometricamente os siltes e as areias, especialmente considerado o perfil
de solos típico das formações geológicas cristalinas (rochas magmáticas e
metamórficas). Essa composição mais argilosa lhe confere uma forte coesão entre
partículas, conferindo-lhe, por conseguinte, mais resistente aos processos
erosivos de superfície e melhores propriedades geotécnicas de uma forma geral.
Vale lembrar que a argila é o tipo de solo formado por minerais com a
granulometria mais fina (o diâmetro das partículas é inferior a 0,002 mm), o
que resulta em uma propriedade altamente ligante, ou seja, a argila dá coesão
aos grãos minerais formadores dos solos.
É interessante a explicação do motivo pelo qual há mais
minerais argilosos na proximidade da superfície dos terrenos. Os minerais das
rochas primárias (magmáticas ou metamórficas) formaram-se em condições extremas
de temperatura e pressão. Ou seja, são ambientalmente compatíveis com essas
condições extremas e, portanto, francamente desarmônicos com as condições
ambientais hoje vigentes na superfície do planeta. O processo de alteração de
uma rocha é, assim, um processo químico e físico-químico que caminha em direção
à produção de novos minerais, mais compatíveis com o meio ambiente da
superfície. Desses novos minerais, os mais equilibrados com esse novo ambiente
são os argilosos.
Além do intemperismo (desagregação e decomposição
físico-química dos minerais da rocha), dois outros fenômenos são importantes na
formação dos solos superficiais e influem em suas características. A
pedogênese, que envolve alteração bioquímica dos minerais, e a laterização, que
implica a migração de íons no interior do solo. Ambos os fenômenos contribuem
para a produção de minerais argilosos e para a cimentação das partículas por
diversas classes de óxidos, o que concorre também para uma maior ligação entre
as partículas desses solos. Graças a esses fatores, os solos superficiais
(horizonte B agronômico) de rochas cristalinas e de muitas rochas sedimentares
chegam a ser 30 vezes mais argilosos do que os solos das camadas inferiores e
até 100 vezes mais resistentes à erosão.
Perfeita distinção
entre a camada superficial, com solos mais argilosos e laterizados, e o solo de
alteração mais profundo, silto-arenoso, extremamente erodível. Terrenos
cristalinos. Foto ARSantos.
Evidência da maior
resistência dos solos superficiais à erosão também em terrenos sedimentares.
Bacia do Paraná. Foto ARSantos.
Bacia do Paraná. Foto ARSantos.
No meio rural há um
problema adicional grave: o desmatamento para
exploração de madeira, para avanço de atividades agrícolas ou pecuárias, o
revolvimento contínuo dos solos superficiais e a não adoção de técnicas
conservacionistas de cultivo, entre outros procedimentos, fazem com que os
principais elementos nutritivos desses solos sejam lixiviados (carreados por
percolação de água), o que os torna progressivamente estéreis para a agricultura.
Tal deficiência em parte só pode ser compensada mediante expressivo gasto com
fertilizantes, corretivos e defensivos agrícolas. Entre as técnicas
conservacionistas de cultivo, destacam-se o emprego de curvas de nível, o
plantio direto, a rotação e a combinação de culturas.
Do ponto de vista econômico, os processos erosivos em
áreas rurais e urbanas brasileiras acarretam prejuízos da ordem de bilhões de
dólares ao ano para o país. A perda média de solos por erosão superficial nas
áreas rurais utilizadas para atividades agropecuárias no Brasil é estimada em
25 toneladas de solo por hectare em um ano. Isso significa a perda de algo
próximo a um bilhão de toneladas de solo por ano, o que, para tornar o desastre
ainda maior, promove intenso assoreamento de cursos d’água, lagos e várzeas. Na
área rural a erosão laminar, a erosão em sulcos, as ravinas e as bossorocas
constituem os processos erosivos responsáveis por esse desastre.
Nas cidades o principal fator de remoção da camada
superficial de solos está na danosa cultura da terraplenagem, implementada de
forma intensa, extensa e despropositada nas frentes de expansão urbana, via de
regra removendo por completo os solos superficiais e expondo à erosão os solos
mais sensíveis das camadas inferiores. As extensas terraplenagens são parte de
uma preguiçosa e irresponsável cultura tecnológica pela qual se busca adaptar a
natureza às disposições de projetos-padrão, ao invés de, criativamente, adaptar os projetos à
natureza (no caso, o relevo) das áreas onde são implantados. Importante ter em
conta que há já hoje à disposição dos empreendedores tecnologias e
conhecimentos que permitiriam a plena adoção do conceito de erosão zero na área
urbana, como arranjos urbanísticos e arquitetônicos adequados a terrenos de
topografia mais acidentada, técnicas de planejamento de serviços de
terraplenagem, expedientes de estocagem e reutilização do solo superficial e
técnicas de drenagem e proteção de taludes contra a erosão, como a técnica
Cal-Jet de pulverização de calda de cal que, por seu baixo custo, permite ser
utilizada como proteção temporária de taludes já durante os serviços de
terraplenagem.
Para se ter uma idéia desse caos geotécnico, na Região Metropolitana de
São Paulo a perda média de solos por erosão está estimada em algo próximo a 13,5 m³ de solo por
hectare/ano, do decorre a produção anual por erosão de até 8.100.000 m3/ano de
sedimentos e sua decorrente liberação para o assoreamento da rede de drenagem
natural e construída. Especialmente as frações arenosas desse volume (3.250.000 m³ ) se
depositam nos leitos de rios e córregos, e as frações silto-argilosas (4.850.000 m³ ) são
levadas em suspensão e
depositadas mais à frente ou em condições de águas paradas ou lentas. O
assoreamento chega a comprometer até 80% da capacidade de vazão das drenagens
urbanas constituindo-se hoje em uma das principais causas de nossas enchentes.
Enfim, os prejuízos para a sociedade brasileira advindos
da remoção e do revolvimento de solos superficiais no meio rural e urbano são
de tal magnitude que estão a exigir uma verdadeira cruzada tecnológica em favor
de sua preservação. Tal campanha deverá ser promovida pelo poder público, em
todos os níveis, e pelos empreendimentos privados diretamente envolvidos com o
problema. Mas, certamente, a primeira iniciativa caberá ao meio
técnico-científico do país.
Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br)
·
Ex-Diretor de
Planejamento e Gestão do IPT e Ex-Diretor da Divisão de Geologia
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Autor dos livros
“Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da
Serra do Mar”, “Cubatão”, “Diálogos Geológicos” e “Enchentes e Deslizamentos:
Causas e Soluções”
·
Consultor em Geologia
de Engenharia, Geotecnia e Meio Ambiente
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